Um novo estudo liderado por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e da Smithsonian Institution revelou que grande parte do conhecimento anterior sobre a musculatura craniana do celacanto — um peixe considerado um “fóssil vivo” — estava equivocada. Publicada em abril, na revista Science Advances, a pesquisa mostra que estruturas antes classificadas como músculos são, na verdade, ligamentos, o que altera de forma significativa a compreensão da evolução dos vertebrados com mandíbula.
O celacanto africano (Latimeria chalumnae) é um dos poucos representantes vivos dos sarcopterígeos, grupo que inclui também os ancestrais dos tetrápodes — animais com quatro membros, como répteis, aves e mamíferos. Apesar de ser um dos peixes mais estudados do mundo, sua anatomia ainda reserva surpresas. O novo estudo constatou que apenas 13% das características musculares tidas como inovações evolutivas estavam corretas.
Além disso, os pesquisadores identificaram nove transformações inéditas, relacionadas à alimentação e respiração, que ocorreram ao longo da evolução dos vertebrados. Entre os equívocos corrigidos está a presença de músculos que supostamente expandiriam a cavidade bucofaringeana do celacanto — estrutura ligada à captura de alimento e respiração. A análise demonstrou que esses “músculos” são, na verdade, ligamentos, incapazes de contrair.
Essas descobertas têm implicações profundas. “O celacanto é ainda mais semelhante aos tubarões e tetrápodes do que se pensava, e mais distinto dos peixes de nadadeira raiada”, afirma o professor Aléssio Datovo, do Museu de Zoologia da USP, que liderou o estudo com apoio da FAPESP. Isso sugere que a capacidade de sucção para alimentação, presente em peixes como carpas, surgiu depois da separação evolutiva entre os grupos.
O celacanto pertence aos sarcopterígeos, enquanto os peixes de nadadeira raiada (actinopterígeos) representam cerca de metade de todos os vertebrados atuais. Esses últimos desenvolveram bocas altamente móveis, o que lhes deu uma vantagem evolutiva. Já celacantos e tubarões, por outro lado, dependem da mordida para capturar suas presas.
Os resultados indicam que a habilidade de sucção não é uma característica ancestral de todos os vertebrados com ossos, como se pensava, mas uma inovação posterior nos actinopterígeos. Essa nova linha do tempo ajuda a redefinir o entendimento da evolução funcional do crânio em peixes e tetrápodes.
A obtenção dos exemplares de celacanto para o estudo foi um desafio à parte. Esses peixes vivem em cavernas submersas a cerca de 300 metros de profundidade, o que torna seu encontro extremamente raro. Os pesquisadores conseguiram, após insistência, dois espécimes emprestados pelo Field Museum, de Chicago, e pelo Virginia Institute of Marine Science.
A dissecção foi conduzida com extremo cuidado por Datovo, que levou seis meses para separar todos os músculos e ossos do crânio de um único peixe. “Desde que seja bem feita, a dissecção não destrói o espécime”, afirma ele. As estruturas estão agora preservadas para consulta de outros cientistas.
O estudo também presta homenagem ao coautor G. David Johnson, renomado anatomista de peixes, falecido em 2024. Com imagens de microtomografia de fósseis e peixes modernos, os autores puderam reconstruir a evolução da musculatura craniana nos primeiros vertebrados com mandíbula.
Agência Fapesp. Novo exame de peixe considerado ‘fóssil vivo’ muda a compreensão da evolução craniana dos vertebrados. 2025