Redescoberta anatômica em peixe considerado "fóssil vivo" revoluciona teoria sobre evolução dos vertebrados

Estudo revela que músculos cranianos do “fóssil vivo” foram interpretados de forma incorreta, impactando a compreensão da origem da alimentação e respiração em seres vertebrados com mandíbula.

Celacanto exposto no Museu Nacional de História Natural, nos Estados Unidos: em trabalhos futuros, pesquisadores pretendem analisar as semelhanças dos músculos cranianos do peixe com os de tetrápodes, como anfíbios e répteis (foto: NRF-SAIAB 34464, Coelacanth, SAIAB. Imagem cedida para a FAPESP pelo NMNH SI)
Celacanto exposto no Museu Nacional de História Natural, nos Estados Unidos: em trabalhos futuros, pesquisadores pretendem analisar as semelhanças dos músculos cranianos do peixe com os de tetrápodes, como anfíbios e répteis. Crédito: Imagem cedida para a FAPESP pelo NMNH SI

Um novo estudo liderado por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e da Smithsonian Institution revelou que grande parte do conhecimento anterior sobre a musculatura craniana do celacanto — um peixe considerado um “fóssil vivo” — estava equivocada. Publicada em abril, na revista Science Advances, a pesquisa mostra que estruturas antes classificadas como músculos são, na verdade, ligamentos, o que altera de forma significativa a compreensão da evolução dos vertebrados com mandíbula.

O celacanto africano (Latimeria chalumnae) é um dos poucos representantes vivos dos sarcopterígeos, grupo que inclui também os ancestrais dos tetrápodes — animais com quatro membros, como répteis, aves e mamíferos. Apesar de ser um dos peixes mais estudados do mundo, sua anatomia ainda reserva surpresas. O novo estudo constatou que apenas 13% das características musculares tidas como inovações evolutivas estavam corretas.

Além disso, os pesquisadores identificaram nove transformações inéditas, relacionadas à alimentação e respiração, que ocorreram ao longo da evolução dos vertebrados. Entre os equívocos corrigidos está a presença de músculos que supostamente expandiriam a cavidade bucofaringeana do celacanto — estrutura ligada à captura de alimento e respiração. A análise demonstrou que esses “músculos” são, na verdade, ligamentos, incapazes de contrair.

Uma nova visão da árvore evolutiva dos vertebrados

Essas descobertas têm implicações profundas. “O celacanto é ainda mais semelhante aos tubarões e tetrápodes do que se pensava, e mais distinto dos peixes de nadadeira raiada”, afirma o professor Aléssio Datovo, do Museu de Zoologia da USP, que liderou o estudo com apoio da FAPESP. Isso sugere que a capacidade de sucção para alimentação, presente em peixes como carpas, surgiu depois da separação evolutiva entre os grupos.

O celacanto pertence aos sarcopterígeos, enquanto os peixes de nadadeira raiada (actinopterígeos) representam cerca de metade de todos os vertebrados atuais. Esses últimos desenvolveram bocas altamente móveis, o que lhes deu uma vantagem evolutiva. Já celacantos e tubarões, por outro lado, dependem da mordida para capturar suas presas.

Os resultados indicam que a habilidade de sucção não é uma característica ancestral de todos os vertebrados com ossos, como se pensava, mas uma inovação posterior nos actinopterígeos. Essa nova linha do tempo ajuda a redefinir o entendimento da evolução funcional do crânio em peixes e tetrápodes.

Bastidores de uma descoberta rara

A obtenção dos exemplares de celacanto para o estudo foi um desafio à parte. Esses peixes vivem em cavernas submersas a cerca de 300 metros de profundidade, o que torna seu encontro extremamente raro. Os pesquisadores conseguiram, após insistência, dois espécimes emprestados pelo Field Museum, de Chicago, e pelo Virginia Institute of Marine Science.

Um dos autores do estudo, Aléssio Datovo posa ao lado de um exemplar de celacanto exposto no Museu Nacional de História Natural, da Smithsonian Institution (foto: arquivo pessoal)
Um dos autores do estudo, Aléssio Datovo posa ao lado de um exemplar de celacanto exposto no Museu Nacional de História Natural, da Smithsonian Institution. Crédito: arquivo pessoal do pesquisador

A dissecção foi conduzida com extremo cuidado por Datovo, que levou seis meses para separar todos os músculos e ossos do crânio de um único peixe. “Desde que seja bem feita, a dissecção não destrói o espécime”, afirma ele. As estruturas estão agora preservadas para consulta de outros cientistas.

O estudo também presta homenagem ao coautor G. David Johnson, renomado anatomista de peixes, falecido em 2024. Com imagens de microtomografia de fósseis e peixes modernos, os autores puderam reconstruir a evolução da musculatura craniana nos primeiros vertebrados com mandíbula.

Referência da notícia

Agência Fapesp. Novo exame de peixe considerado ‘fóssil vivo’ muda a compreensão da evolução craniana dos vertebrados. 2025